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Conta a lenda que corria, pelos vales infinitos do Abismo da Desesperança, um jovem que por lá se aventurara. Nas colinas escarpadas de pedras afiadas e no árido frio da noite é que o tolo foi se meter, a correr pela pedra escarpada e sem vida, sem saber o que naqueles recônditos horrendos da natureza poderia encontrar.

Aventurara-se, em verdade, não é mais precisamente o que lhe ocorrera. Mais preciso é dizer que as desventuras da vida foi que lá o conduziram, e foi por lá que o pobre se perdeu. Às noites insones correndo das mais famintas feras que habitam a escuridão, sofrendo pela sede e pelo cansaço, vencido pela falta de acalanto, por vezes tombava exausto. E nesses letárgicos semi-sonos, que mais eram da alma que do corpo, não lhe sorria o descanso.

Vinham às suas vertigens internas, somar-se todos os espectros malignos que assombravam tão temível desfiladeiro. E lhe perguntavam os fantasmas, sibilantes, “donde vens, para onde vais, que fazes aqui, como aqui chegaste?” e a eles ele não respondia, apenas levantava e corria, e ao correr deixava ficarem para trás as lágrimas que lhe escapavam das bochechas frias, pois mais dolorosa não era a inquirição dos espectros do mal, mas a verdade fria de que não sabia responder, nem que o quisesse.

O pobre jovem de fato não sabia como ali chegara, como descera a tão profundos e escuros abismos e galerias, berços do sofrimento. Não podia imaginar como se deixara tão longemente vaguear a ponto de se perder donde não havia saída, onde não havia fim. Sabia que seu devaneio impetuoso lhe havia conduzido ao nada, para além da civilização, para além de presença humana que o pudesse resgatar.

Mas, de novo, exausto de correr pensava “Ó Deus, porque me abandonaste aqui, por que me deixaste vaguear por este inferno, este hades sem fim?”. Cambaleava quase a cair, e sobre si passavam as sombras das aves de rapina que lhe buscavam para sacrificar. Que não saísse da sombra das cavernas do vale, que o devorariam e lhe espalhariam as vísceras pelos ares com suas garras destruidoras.

Chorava, quieto e engolia sua amargura para si. Lamentava a própria existência até ter chegado ao fundo de toda escuridão daqueles desfiladeiros. Deparou-se, um dia, diante de um abismo sem fundo. Ou, ao menos, tão profundo, que só a escuridão lá parecesse.

Parou sereno, mas decidido, à beira do abismo e mirou a escuridão. Aceitou-a para si, e como se lhe erguesse com mãos gigantes negras a escuridão lhe recebeu, tomou e chamou como que ainda dizendo “Não podes voltar, deita-te aqui eternamente com os mortos e partilha do seu mesmo destino! Deixa-te comigo que a sombra é o descanso eterno”.

Assim, no momento decisivo, fechou os olhos pronto para lançar-se abaixo,  à escuridão infinita e, num momento de pequeno vacilo foi que voltou a abrir os olhos surpreso. Uma presença estranha se fizera repentina ao seu lado.

Não pôde crer e, estonteado, deu um passo atrás, livre de se entregar à queda.

Na escuridão quase completa daquelas escarpas sem vida, brilhou de repente a presença de um anjo. Sua luz inundou todo o abismo que o jovem há pouco se decidira deixar engolir, eis que flutuando pelas duas asas brancas e poderosas de luz dourada faziam toda treva se afastar.

O jovem não pôde, senão, esquecer toda a dor e toda a agrura. Apenas mirar aqueles olhos verdes como raríssimas esmeraldas e os cabelos como que de fios de ouro. A presença poderosa do anjo, então lhe fizera cair de joelhos. Viu que a escuridão se afastara e o mal se desvanecera.

“Que queres de mim?!” inquiriu repentino para anjo, o qual, em resposta, apenas lhe sorriu. De flutuando sobre o infinito pousou diante dele e lhe estendeu a mão. Sem nada dizer com palavras, com seu rosto doce e puro apenas lhe comunicou que sua graça alada fora a resposta que clamara a Deus. Que lhe viera salvar daqueles abismos infinitos da dor, do sofrimento e da solidão.

Assim, ele lhe entendeu. Tomou a mão do anjo que segurou a sua de volta com força. O anjo, abriu as asas imponentes e num golpe que tremeu as pedras soltas daquela pedregosa penha alçou-se no ar, levando consigo pela mão o pobre jovem, livrando-o da escuridão para sempre. Deixando que a treva apodrecesse por si só no fundo daquele abismo maldito.

Ascenderam ambos aos céus, mirando o sol e a luz infinita e, a cada bater das asas angelicais, uma angústia do jovem se lhe expurgava. Sua solidão seria a primeira, a tristeza, a dor, a angústia e o medo da vida, todos sepultados na escuridão que só diminuía abaixo de seus pés.

Enfim, quando não havia mais vales escarpados nem regiões negras da terra por onde se perder e vaguear, quando atingiram os campos floridos da alegria foi que o anjo o deixou pousar. Docemente lhe soltou e diante dele também pousou. Subitamente suas asas se desfizeram e as plumas divinas se esvaíram no vento. O anjo agora era um outro mortal, que, cumprindo uma tarefa divina, ali se prostrava para o jovem ainda mais seguir.

“Por quê?” ele indagou aflito, “Não és mais anjo? Não podes outros ainda salvar”.

“Não” respondeu o anjo, “Minha tarefa era te salvar. Só o que pude foi mergulhar nos desfiladeiros da escuridão até que encontrasse uma criatura que me pudesse libertar.”

“Libertar? Mas não és livre para voar por onde quiser, para ir aonde lhe convier?”

“É a nossa maldição sobre os anjos: que voássemos livres sem em ninguém tocar. Quando o fizéssemos, perderíamos as asas e nos tornaríamos mortais. Livres para ir aonde quiséssemos, mas solitários para sempre.”

“Mas e por que me tocaste?”

“Para que pudesse te pedir que me acompanhasses.”.

“Acompanhar-te? Aonde?” ele ainda inquiria confuso.

“Aonde tu quiseres novamente te aventurar. Teu momento de agruras ficou para trás. Daqui para frente, como eu, devemos escolher nossos caminhos e por eles trilhar. Minha recompensa será de te pedir, e se tu quiseres, me acompanhar, e ao meu lado buscar a luz, ou a treva, a tristeza ou a alegria, seja o que for, nós dois. Um para ao outro suportar e guiar. Um para ao outro amar, como demônios que ascendem das trevas, e anjos que caem do paraíso.”

O jovem sorriu com alegria. Alegria de como há muito não o aquecia o coração, e perguntou ao anjo, com inocência “E se tu ainda tivesses tuas asas, até onde me levaria para tão simples recompensa?”

“Seu eu pudesse? Até a lua”, respondeu o anjo com doçura e luz em seu olhar, tocando-lhe levemente no rosto com a mão macia. E este toque o fez emocionar e chorar pelo conforto de tê-lo ali, e daquele inacreditável juramento recém ter ouvido.

“E tu?”, perguntou o anjo, que não era mais anjo, mas agora ainda belo como lhe concebeu a divindade, “se pudesse tu ter as minhas asas, até onde me carregaria para que pudesse depois nos caminhos tortuosos deste mundo me conduzir e amar?”

“Eu?” sorriu o condenado maldito, que já de todo estava liberto. “Eu te levaria até a lua. Até a lua, ida e volta.”

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